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sexta-feira, 30 de março de 2012

De pai para filho(a)

- Pai, por que você está chorando?

Ela cutuca o braço dele e insiste: pai, por que você está chorando?

Ele tira as mãos do rosto que tentavam disfarçar o pranto e olha a pequena menina sem saber por onde começar. A televisão, já no mudo, mostrava as comemorações do time adversário e a lamentação da derrota do seu time do peito. Até então a garotinha via com graça os berros daquele senhor que toda quarta e domingo se debruçava sobre a TV para acompanhar agoniado um bando de homens correndo atrás de uma bola. Tinha só seis anos e o pai, desde que soube que não teria um menino, distraíra-se no ato de passar a paixão como herança. Sempre afirmou que “filho meu não torce pra outro time”, mas havia falhado e não encontrava palavras para explicar o que se passava naquela cabeça transtornada de torcedor derrotado.

Olhou a menina nos olhos, carregou-a pelos braços, pegou a chave do carro e saiu. Em poucos minutos estavam em frente ao estádio onde antes milhares haviam testemunhado a derrota desmoralizadora. Ainda deixavam o local alguns cabisbaixos que, a passos lentos, tentavam retardar o árduo caminho de volta para casa. Não havia festa, não haviam gritos, apenas um vácuo de expectativas não atingidas, de sonhos não alcançados. Os olhos da pequena tentavam entender o que viam, mas, antes de perguntar, uma voz serena apesar da raiva e dor saltou-lhe aos ouvidos: Aqui é nossa casa. Foi onde muitos anos atrás um grupo de homens ambiciosos fundou nosso time.

Explicou, então, que durante quase cem anos o clube havia acumulado eras gloriosas, rivalidades históricas, títulos memoráveis. Falava como dono das vitórias, culpado das derrotas e convicto de que aquele laço era eterno, não havia como se romper nem pela mais longa fila sem troféus. Era coisa séria, enfatizou, coisa que não se larga; uma vez dentro, você tinha uma missão, um amor para defender. Prometeu ali que, no próximo domingo, estariam os dois do lado de dentro daqueles muros que arrepiavam a garotinha com os olhos pra cima indo de lá pra cá e de cá pra lá para compreender a dimensão daquele lugar e daquela paixão paterna.

Uma semana depois, lá estavam os dois. Menina sentada nos ombros do pai, camisa do time vestida, visão inédita de um estádio em festa antes da entrada dos jogadores. Não entendia o que valia ou qual campeonato era, mas sabia quem tinha que ganhar, para quem estavam todos ali a torcer feito loucos que esquecem tudo por 90 minutos de concentração máxima na bola branca, no gramado verde. Sentiu um nó na garganta quando um chute adversário fez o goleiro desmoronar no chão e olhar o fundo da rede estufada como se visse a morte. Entendeu, então, as lágrimas do pai. Colocou também as mãos no rosto para não mostrar seu choro e já não olhava mais ao campo quando um barulho ensurdecedor quase a fez perder o equilíbrio de onde estava sentada.

O estádio cantava, pulsava, fervia. O time estava perdendo, o nó na garganta ainda não estava desfeito, mas gritou junto mesmo assim. Chorava ao mesmo tempo, sem saber o motivo. Seu pai pulava e a insanidade ao seu redor a fez rir também. O coração pulava no peito quando a bola saiu do campo de defesa numa viagem longa pelos ares até quicar na cabeça de algum daqueles que brigavam aos cotovelos por um espaço de chão. Sobrou limpa na cara do gol, para o pé chapado que empurrou a redonda macia até o barbante. Foi arremessada aos céus, caindo num abraço que se multiplicou pelo estádio e cujo grito de gol ficou ecoando por seus ouvidos por horas. Gritava, sorria, beijava o símbolo e tudo mais que havia aprendido com as maluquices de seu pai em frente à televisão.

No dia seguinte, no portão da escola à espera do pai e com a mesma camisa do dia anterior, travou um duelo com dois meninos de torcidas opostas. Eles diziam que aquela camisa estava fora do campeonato, sem chances de vitória e um monte de números e posições que não faziam o menor sentido com o que havia se passado 24 horas atrás. Perguntou-lhes então se sabiam que muitos anos atrás um grupo de homens ambiciosos havia fundado aquele time e que, durante quase cem anos, glórias haviam sido acumuladas e brindadas por um amor incondicional de dezenas de milhares. Ficou sem respostas, mas não as queria. Entrou no carro, deu um beijo no rosto do pai, olhou-o nos olhos e beijou o escudo no peito. A herança havia sido passada.

por Guilherme Reis

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